Imagine que você instalou em casa um alarme de incêndio. Ele dispara sempre que o sensor detecta fumaça, avisando aos moradores da necessidade urgente de apagar o fogo. Ninguém nega que o alerta sonoro que o dispositivo dispara é pra lá de aporrinhante – ele precisa mesmo ser muito ruidoso, com uma intensidade de decibéis que fira os tímpanos de todos ao redor, inclusive dos vizinhos (que também estão sob ameaça de perdas e danos em caso de proliferação das chamas). Não seria um absurdo se você, na situação em que o alarme soa, ao invés de chamar os bombeiros, agarrar a mangueira d’água ou correr para o extintor, se apressasse para pegar um martelo com a intenção de destruir o alarme?
O parágrafo anterior descreve um argumento que me foi apresentado por um ativista holandês do Extinction Rebellion enquanto nos preparávamos para ocupar a rodovia A12 em Den Haag (a cidade que no Brasil chamamos de Haia). O rapaz, que infelizmente não quis ser filmado para o documentário que eu realizava, pretendia descrever a atitude dos negacionistas da catástrofe climática que com frequência aderem a uma postura de “matem o mensageiro!” quando este traz notícias sobre o superaquecimento planetário em condições de uso continuado de combustíveis fósseis e prosseguimento de práticas ecocidas de pecuária industrial. Em essência, a ideia que o rebelde me apresentou é a de que os negacionistas da crise ecológica estão dispostos a deixar que nossa casa pegue fogo e mobilizam-se para marretar os malditos alarmes.
No contexto holandês, o negacionista também representa o “cidadão-de-bem”, provavelmente eleitor do <partido de Geert Wilders>, que aplaude quando a polícia arrasta pelo asfalto e encarcera os ativistas do XR que vem tentando realizar desobediência civil em prol da mudança radical de rumos em nossas políticas atualmente tão ecocidas.
Muitos manifestantes têm dito nas ruas e redes que denial is not a policy (a negação não é política pública), mas o fato é que a política e o negacionismo estão perigosamente emaranhadas e elevadas a um grau turbo com a ascensão dos populistas de extrema-direita como Trump, Bolsonaro ou Netanyahu. Deletérios líderes como estes indicam que o negacionismo serve sim como policy e que isto nos conduz cada vez mais a um incêndio que não haverá quem apague e a uma extinção em massa de espécies que não haverá quem depois des-extinga.
Aqueles que, diante de um planeta em chamas, preferem calar os alarmes ao invés se engajar no apagamento do fogo, inimigos de um futuro vivível para todos os seres sencientes, constituem um poder perigosíssimo que precisa ser compreendido e confrontado. Negar a força, a virulência e a disseminação massiva do negacionismo seria não apenas atitude insalubre e suicida – seria um outro tipo de negacionismo, que nega importância aos efeitos sociais concretos dos negacionistas em posição de poder.
Livros recentes, como The Parrot and the Igloo: Climate and the Science of Denial, de Lypsky, ajudam nesta tarefa, assim como obras mais antigas mas ainda oportunas como Merchants of Doubt de Oreskes e Conway (que também foi transformada em documentário). Minha convivência e participação em protestos com os rebeldes do XR revelou que, na perspectiva deles, este movimento social é responsável por afrontar a negação sistemática e organizada da urgência em que estamos imersos; eles decidem agir sensacionalmente, ainda que fora-da-lei, para correar a apatia e pedir este óbvio ululante: em caso de incêndio, não há sentido em aniquilar os alarmes, nossa ação direta, imediata e urgente deve ser contra os que tacam petróleo nas chamas.
Este óbvio ululante é algo que socialmente estamos fracassando em realizar. Um negacionista é algo similar a este insano personagem imaginário que destrói com um martelo o alarme de incêndio ao invés de trabalhar pelo apagamento das chamas. Pior: não o faz apenas nos limites de sua própria casa, mas sim no lar comum em que co-habitamos, a esférica espaçonave Terra.
Muitos daqueles que chamamos de negacionistas da crise climática agem diante de cientistas, jornalistas e cidadãos preocupados – estes que estão ativos na luta por diminuir os impactos humanos sobre a atmosfera – exatamente como a figura na parábola: sacam um martelo para destruir reputações daqueles que são denominados, de maneira pejorativa, como alarmistas. Um negacionista é alguém que, diante de um incêndio planetário, não quer apagar o fogo mas sim silenciar no porrete os malditos alarmes que ficam soando de dentro de universidades e institutos científicos, atrapalhando o sono dos conformistas e emperrando os negócios usuais do capetalismo extremo.
Ao invés de atuar nas causas da catástrofe ecológica, os negacionistas atuam contra os cientistas e ativistas que expõem quais são estas causas e que propõem estratégias rumo a um outro mundo possível – sem combustíveis fósseis nem agropecuária baseada em imensas factory farms produtoras de carne e laticínios.
Um negacionista também é normalmente um otimista inflexível, e com frequência por motivos que não se enraízam em nenhuma conclusão racional ou evidência empírica – trata-se de um otimismo religioso, de uma fé insensata de que no fim tudo ficará bem. Se ainda não está bem, é porque ainda estamos no meio. Os poderes do mundo – seja deus ou seus pastores, seja presidentes plutocratas e parlamentares palacianos, seja bilionários do Vale do Silício que são também fabricantes de foguetes fálicos, algum destes poderosos – ou algum tipo de aliança de riquinhos – certamente vai, a bom tempo, nos salvar de qualquer probleminha que possamos estar tendo. Don’t worry, be happy.
1 bilhão de pessoas vão morrer devido às catástrofes climáticas sobretudo entre os mais pobres do planeta: eis a estimativa do que ocorrerá ao fim do século 21 caso o incremento na temperatura global seja de “apenas” 2 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais (estamos rapidamente correndo nesta direção…). Ou seja, ainda que consigamos – o que parece a cada dia mais implausível – nos manter dentro do que foi proposto pelo Acordo de Paris, ainda assim a catástrofe será desta mega-magnitude de dimensão. O estudo é assinado por Joshua Pearce (Western Universit, Ontario, Canada) e Richard Parncutt (University of Graz, Austria). Saiba mais: https://www.salon.com/2023/08/30/negligent-manslaughter-study-finds-climate-change-could-1-billion-mostly-poor-people/
Este panorama do porvir pode gerar ceticismo em muitas pessoas que se acostumaram a enxergar a ciência como um campo politicamente “neutro” e que não se aventura em profecias. Mas é uma triste atualização contemporânea do ceticismo, esta doutrina filosófica milenar e digna de respeito, quando ela é raptada por negacionistas que querem espalhar a tal da suspeita sobre um consenso científico global que conta com uns 99% por cento de concordância: quase não se encontram cientistas sérios que neguem a realidade do superaquecimento planetário causado por agência humana. Os que se encontram provavelmente estão sendo muito bem pagos pelos bilionários responsáveis pelo lobby petrolífero e carnista.
A ciência está sim muito melhor capacitada para falar com probidade sobre o porvir do que Nostradamus ou a Mãe Dinah. Ainda assim, muitos acham que Ciência não deve se meter a falar sobre o futuro. Nesta visão bastante limitada do que a ciência deveria ser, os cientistas lidariam apenas com os “fatos da natureza” e não poderiam nem deveriam ficar especulando sobre o possível no médio e longo prazo – deixemos isto para os filósofos, futurólogos e escritores de ficção especulativa. No entanto, a exigência de que cientistas não sejam cidadãos politizados cada vez mais colapsa diante dos fatos que a própria ciência descobre e desvela, que possuem urgente interesse público, e que obrigam muitos cientistas a se politizarem enquanto mensageiros de uma hecatombe que estamos exacerbando. Sim, cientista pode meter o bedelho no futuro, mas deve fazê-lo com os pés bem plantados tanto no laboratório quanto na teoria – fincado na experiência empírica e nos estudos partilhados na comunidade internacional e cosmopolita de cientistas.
O que me parece interessante neste tipo de atuação contemporânea de cientistas como profetas-do-apocalipse – uma expressão pejorativa, eu sei, mas é difícil pensar em outra mais adequada para expressar o fato de que cientistas estão prevendo 1 bilhão de pessoas mortas devido às disrupções climáticas neste século – é também o fato de que a previsão é feita para que não se cumpra. Os cientistas analisam as tendências atuais, e as extrapolam para pintar um quadro do que virá, publicando seus prognósticos sobre a virada para o século 22, ainda estando 75 anos antes da possibilidade de sua previsão ser confirmada ou falseada, também porque desejam que possamos agir agora para que a sinistra previsão não se torne realidade.
Trata-se de ciência prospectiva que se aproxima muito da ficção científica distópica quando esta pinta seus worst case scenarios não na intenção de gerar fatalismo apático, mas sim para mobilizar a audiência em prol de uma agência em que os cenários terríveis, na distopia prefigurados, sejam evitados. Este é um fenômeno que me parece bem diferente daquele estudado sob o conceito de <dissonância cognitiva, que ocorre quando a profecia falha>. No caso da ciência dos prognósticos catastrofistas, trata-se de alertar para um cenário que é possível mas não inelutável, e a própria publicação do prognóstico pode gerar ações que fazem com que o cenário prognosticado não se realize, num caso singular de profecia que foi feita para falhar.
Um pouco diferente é a atitude dos cientistas que, mais próximos dos historiadores, voltam-se para o passado e tentam averiguar qual o tamanho do estrago já causado pela mudança do clima causada por agência humana. Em recente matéria publica pela Grist, ficamos sabendo que uma pesquisa de Colin Carlson, inspirada em iniciativa prévia de Anthony McMichael, estima que 4 milhões de pessoas já morreram por causas conexas ao aquecimento global desde 2000, e que isto é provavelmente um número subestimado. Saiba mais: https://grist.org/health/climate-change-has-killed-4-million-people-since-2000-and-thats-an-underestimate/
Já o Fórum Econômico Mundial, limitando suas previsões à primeira metade do século, afirma que “até 2050, as alterações climáticas deverão causar mais 14,5 milhões de mortes e 12,5 bilhões de dólares em perdas econômicas em todo o mundo” (Saiba mais: https://www.weforum.org/publications/quantifying-the-impact-of-climate-change-on-human-health/).
As estimativas podem até parecer radicalmente discrepantes e por isto incompatíveis – o F.E.M. dizendo que serão menos de 15 milhões de mortes até 2050, e o outro estudo dizendo que 1 bilhão de pessoas vão morrer até 2100. Porém, a conclusão a ser tirada da somatória destes estudos não é outra senão esta: a segunda metade do século 21 será quase certamente de aceleração e exacerbamento das catástrofes climáticas.
Isto nos leva também a uma consideração especulativa no campo da ética que vem ganhando força: trata-se de pensar para além do nosso usual kantismo moral, que opera com imperativos categóricos que valem apenas para relações humanas interpessoais focadas no tempo presente e no máximo numa futuridade próxima e rasa, em direção a uma expansão da eticidade que foi proposta com peculiar brilhantismo por<Hans Jonas em seu O Princípio Responsabilidade>: trata-se de pensar nossa responsabilidade diante das futuras gerações e reformular o imperativo categórico para que este inclua os seres vivos vindouros.
Nesta ética renovada, afinada à catástrofe climática em curso, nosso compasso moral passa a agir tendo como força determinante uma espécie de imaginação do que as pessoas ainda por nascer iriam pensar ao lançar um olhar retrospectivo para nós, a geração atual. Para os adolescentes de 2070, 2080, 2090, nós que estamos vivos na década de 2020 seremos vismos como bons ou maus ancestrais? <O filósofo australiano Roman Krznaric escreveu uma obra-prima sobre o tema em Como Ser um Bom Ancestral (Ed. Zahar)>.
Já a cineasta e pensadora Astra Taylor fez uma boa súmula do problema de nosso “vandalismo ambiental” e os direitos das futuras gerações para o The Guardian:
“What if climate breakdown is a violation of the rights of those yet to be born? Finally, this urgent question seems to be getting the attention it deserves. In September 2019, an astonishing 7 million people from nearly 200 countries took to the streets as part of the youth-led global climate strike. Young people around the world recognise that the disastrous repercussions of the already present ecological crisis will fall disproportionately on their shoulders, and the shoulders of generations to come – in particular on those whose communities have emitted the smallest proportion of greenhouse gasses.
Greta Thunberg, whose “school strike for the climate” ignited a movement, often speaks on behalf of those who don’t yet exist. Addressing the UN climate action summit in Manhattan on 23 September she denounced the assembled adults for pursuing money over morality and embracing “fairytales of eternal economic growth” instead of facing the facts of hard science. “Young people are starting to understand your betrayal,” she said. “The eyes of all future generations are upon you. And if you choose to fail us, I say: we will never forgive you.” (https://www.theguardian.com/environment/2019/oct/01/bad-ancestors-climate-crisis-democracy)
Poderíamos pensar numa atualização da Caverna platônica em que os negacionistas, firmemente atados à posição de contempladores de sombras, atacam e matam quaisquer cidadãos que desçam das alturas iluminadas do conhecimento científico para tentar libertá-los de sua confortável cegueira voluntária. Esta descrição certamente seria lida por muitos como arrogante, um símbolo prepotente do intelectual pretensamente salvífico, o único que enxerga num mundo de cegos, e que se vê como um herói que precisa quebrar as correntes que prendem os outros. Este tosco quadro platônico precisa ser complexificado pois o problema com as correntes é que elas muitas vezes são auto-escolhidas – a servidão é voluntária.
Isto também significa que muitas vezes não precisamos ir procurar o negacionista lá longe, dentro de um palácio presidencial, dentro do escritório de CEO duma petrolífera, dentro de algum bunker onde o bilionário do Vale do Silício prepara-se para gozar seu apocalipse climatizado com uísque e caviar; você pode encontrar o negacionista olhando no espelho. “Ah, eu não suporto notícia sobre aquecimento global, isto é gatilho para minha ansiedade!”; “ah, eu acho que este povinho ecochato está exagerando, fazendo terrorismo verde só para assustar os capitalistas!”, “ah, eu não aguento estes pessimistas que só se lamentam pela devastação ambiental, por aqui é good vibes only!”, “ah, tudo tem solução pra quem orar com fé para Deus, ele sempre vem nos resgatar!” – e por aí vai. Há negacionismo em qualquer igrejinha de esquinha, em qualquer boteco onde as pessoas suam num calor da porra mas a culpa nunca é do capitalismo industrial extrativista, em qualquer rave onde a Barbie Gratiluz e o Ken Namastê garantem que tudo vai ficar bem desde que nos conectemos com as energias místicas sobrenaturais…
O negacionismo também invade o panorama midiático em todos os âmbitos, das grandes corporações de rádio e TV às mega-plataformas da Big Tech, todas aliadas numa conspiração de silêncio pois notícias sobre o clima em tumulto não vendem. Mas aqui também o negacionista não está só lá longe, mais uma vez ele pode ser encontrado no espelho – inclusive no Black Mirror que a telinha de nosso celular. “Ah, eu não compartilho notícia triste sobre catástrofe climática, não quero deprimir ninguém que visita meu feed!”; “ah, quando eu vejo prognósticos deprimentes sobre o futuro, eu nunca espalho a notícia pra não deixar ninguém down!”; “mas ah, rede social foi feita pra diversão, pra piada, pra meme, não é pra ficar espalhando ciências apocalípticas!” Quem nunca? Um caminho seguro para uma impopularidade tenaz nas redes sociais e um baixo engajamento com o clima é justamente realizar jornalismo investigativo sobre a catástrofe climática que seja bem embasado e crítico: é certeza de que tudo conspirará para que tal conteúdo seja silenciado, ignorado, não lido nem espalhado.
Há um conforto e uma conveniência em se estar preso na obscura e cálida caverna do otimismo negacionista. Portanto, a metáfora colapsa: quem tem o saber das catástrofes climáticas que estão a se desenrolar e que estão por vir não são privilegiados que descendem de uma região celeste de luminosidade salvífica; seria talvez mais oportuno dizer que os filósofos que romperam com o confinamento na Caverna do negacionismo conformista tiveram que fazer um percurso para baixo, rumo a uma verdade que está “no fundo do poço”, como ensinava Demócrito no princípio da filosofia materialista. Os que despertaram do transe negacionista promovido por tantos lobbies e dólares foram visitar o que há de mais abismal, e seu conhecimento que soa alarmes e pede por ação conjunta é mal visto por aqueles acostumados à preguiçosa poltrona do inativismo e da confiança em deus, na tecnologia e no capital. Enquanto ficarmos travados neste impasse, confortavelmente entorpecidos pela fé de que a solução está garantida e alguém alhures a aplicará, toda a vida no planeta estará frita.
Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro
25 de Março de 2024
REFERÊNCIAS
https://www.theguardian.com/environment/2019/oct/01/bad-ancestors-climate-crisis-democracy
A fotografia na abertura deste post foi extraída do portal Al Jazeera (2019).
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— A Casa de Vidro (@acasadevidro) March 25, 2024
Publicado em: 25/03/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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